Em 24 de dezembro de 2019, no apagar das luzes do Congresso, o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Alcunhada de Pacote Anticrime, prevendo no seu Art. 20 a vacatio legis de 30 dias a partir da data de sua publicação. A despeito das polemicas em torno de diversos trechos do dispositivo, alguns já tendo, inclusive, sua eficácia suspensa pelo STF, via decisão liminar nas ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (à exemplo do Art. 3º-B que instituiu o Juiz de garantias, do Art. 28 que altera o procedimento da promoção do MP pelo arquivamento do Inquérito, entre tantos outros) a Novatio Legis já está em vigor, e alterou substancialmente o Ordenamento Jurídico Penal brasileiro, dentre eles o procedimento no Tribunal do Júri.
As Leis alteradas pelo Pacote Anticrime foram: Decreto-Lei 2.848/1940 — Código Penal; Decreto-Lei 3.689/1941 — Código de Processo Penal; Lei 7.210/1984 – Lei de Execução Penal; Lei 12.037/2009 – Identificação Criminal; Lei 8.072/1990 — Lei dos Crimes Hediondos; Lei 9.296/1996 — Lei da Escuta Telefônica; Lei 9.613/1998 — Lei da Lavagem de Dinheiro; Lei 11.343/2006 — Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas; Lei 10.826/2003 — Sistema Nacional de Armas; Lei 11.671/2008 — Presídios Federais de Segurança Máxima; Lei 12.850/2013 — Organizações Criminosas; Lei 13.608/2018 — Recebimento de Denúncias; Lei 8.429/1992 — Lei de Improbidade Administrativa. Ao todo foram 13 diplomas, o que como dito acima e reforço, alteram toda a sistemática do Direito Penal Material e Formal.
Logo, é impossível discorrer sobre todas as alterações de maneira razoavelmente clara em um único artigo ou texto, tanto isso é verdade que já foram lançadas obras inteiras para tratar do tema. Assim por uma questão didática, esse blog tratará sobre as alterações mais importantes em artigos separados. Hoje falaremos sobre o Art. 492, I, “e” do CPP, que passa a viger com a seguinte redação.
Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. (grifamos)
Como se apercebe foi incluído na redação Legislativa a possibilidade de cumprimento provisório da sentença nos casos em que a pena concreta fosse igual ou superior a 15 anos, mesmo que não presentes as condições da prisão cautelar. Para uma compreensão satisfatória de toda a problemática envolvendo essa alteração é preciso trazer à baila alguns pressupostos e princípios necessários à prisão dentro de nosso ordenamento. Inicialmente, cumpre ressaltar que nossa Carta Magna prevê que ninguém será levado a prisão, senão por ordem fundamentada da autoridade Judicial competente ou em caso de Flagrante Delito.
Desse modo, podemos dividir as prisões em três grupos sendo. a) Prisão em flagrante, que por sua vez tem natureza jurídica de Prisão Administrativa Pré-cautelar; b) Prisão Penal, decorrente de sentença Penal Condenatória Transitada em julgado, esta figurando como prisão pena; c) Prisão Cautelar, na modalidade temporária ou provisória lato sensu. Analisando a natureza jurídica da Prisão trazida pela L. 13.964, não se verifica uma adequação a nenhuma das modalidades previstas.
Explico.
Obviamente quem está sendo julgado no Plenário do Júri não está mais em situação de flagrância delitiva, logo esta modalidade eliminamos com facilidade sem maiores dificuldades cognitivas.
A prisão Penal deve decorrer de Sentença Penal passada em julgado, assim sendo, mesmo tendo em vista o Principio da Soberania dos Veredictos aplicado ao Tribunal do Júri, ainda é possível uma anulação daquela sentença pelo respectivo Tribunal competente, sendo necessário a realização de um novo Júri. O que implica em dizer que a decisão é perfeitamente passível de reforma, evidentemente uma decisão que ainda pode ser alterada não passou em Julgado.
Já a Prisão Cautelar, que tem como pressupostos cumulativamente o Fumus Comissi Delicti e o Periculum Libertatis, resta como medida equivoca a ser aplicada a todos os casos. Dado ao fato de que já existia na redação antiga a possibilidade de prisão preventiva, quando presentes os pressupostos, inclusive dentro do próprio procedimento do Júri, no art. 413, § 3º, que trata da pronuncia, o Juiz podia motivadamente, decretar a prisão preventiva se julgasse necessário. Em resumo se não estão presentes as condições que justificam a prisão cautelar que afigura como Extrema Ratio da Ultima Ratio do Direito Penal, a previsão do novo art. 492 não pode se firmar aqui.
Nesse ponto é importante ressaltar que dentre as muitas alterações trazidas no tocante a prisão, o Legislador cuidou de expressar em diversos artigos sobre a necessidade de fundamentação em qualquer decisão que culminasse em prisão. Desse modo em uma análise sistemática do dispositivo salta aos olhos que ele é contra, com o perdão da redundância, toda a sistemática que se busca implantar com a nova Lei.
Diante disso, essa nova modalidade de prisão teratológica, que há meu ver deve ser interpretada como uma Prisão Penal Sui Generis, predicado que em se tratando de Matéria Penal por si só já traz uma ideia de absurdo, afronta diversos princípios de crucial observância além de desafiar o entendimento de Nossa Suprema Corte com relação ao cumprimento antecipado da Pena. Assim esperamos que a OAB se manifeste pela ilegalidade de tal dispositivo, por não encontrar amparo jurídico, e que isso não demore, diga-se de passagem. Em que pese essa discussão sobre a constitucionalidade ou não da nova redação do Art. 492, I, “e” do CPP já ser suficientemente problemática, estamos no Brasil Tupiniquim, e aqui o problema não poderia ser só esse, então surge outro não menos importante que é a eficácia da nova norma em relação a crimes cometidos antes de sua edição.
Engana-se quem pensa que essa é uma questão a ser resolvida facilmente em consonância com o Principio da Reserva Legal, isso porque tal princípio só tem aplicação na interpretação das normas de Direito Material, a Lei Anticrime é uma norma Penal Hibrida, e pra piorar um pouco mais, essa alteração especifica diz respeito a um dispositivo processual.
A singela Doutrina que já se forma a respeito da nova Lei já se divide, existem os que reconhecem a retroatividade do instrumento, sob a alegação que ela não altera o Estado de Fato do Direito Material, não majorando nem criando sanções, tendo em seu bojo apenas conteúdo de natureza formal que apenas afeta a instrumentalidade com que é conduzido o Devido Processo Legal, o que importa em dizer que não há ilegalidade em sua retroatividade.
Noutra esteira, esta a qual me filio, entende-se que por criar uma situação concreta de prejuízo ao Réu não há que se falar em retroatividade do dispositivo. Tendo em vista principalmente que toda norma Penal Mista ao fim e ao cabo, terá natureza material quando mitigar de qualquer modo os Direitos Subjetivos do Réu.
Enfim, caberá aos Tribunais pacificar a questão.
Noutro ponto o Legislador em um surto anormal de razoabilidade (atributo do qual ele se mostrou muito carente quando elaborou tal artigo), previu no §3º a possibilidade de o Juiz Presidente deixar de iniciar o cumprimento provisório da Sentença quando houver questão substancial cuja analise em grau de Recurso possa levar a revisão da Condenação.
Podemos usar como um exemplo uma situação onde a defesa alegar, e demonstrar um lastro probatório mínimo de que o Réu agia amparado por uma das excludentes de ilicitude do Art. 23 do CP. Antevejo que nessa situação, por serem os membros do Júri leigos, não disporem de conhecimento técnico para valorar um instituto despenalizador de maneira exaustiva e não precisarem motivar suas decisões, seria uma típica situação onde poderia o presidente da sessão deixar de iniciar o cumprimento provisório.
Adiante na análise, os §§, 4º, 5º e 6º do mesmo artigo, estabelecem o seguinte. Quando o Juiz presidente aplicar o cumprimento provisório de sentença, poderá o Réu em recurso pedir o efeito suspensivo da decisão. Sabemos que em regra a Apelação não tem efeito suspensivo, porém nessa situação, pode o Réu nas razões do Recurso pedir incidentalmente tal efeito, ou direcionar petição apartada diretamente ao Relator acompanhado de todos os documentos necessários a gerar convencimento no Magistrado sobre as alegações, a meu ver a segunda opção, no caso concreto, produziria os efeitos almejados de maneira mais célere. Vale lembrar que os pré-requisitos para a decisão que concede a liminar estão elencados nos incisos I e II do § 5º e são cumulativamente
Não tem propósito meramente protelatório; e
Levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.
Neste ponto, por hora, devo criticar o fato de que o inciso traz em sua redação o termo absolvição, e sabemos que em observância do Princípio da Soberania dos Veredictos o Juízo revidendo não pode absolver o Réu, mesmo assim em que pese o erro de edição do Legislador, isso já é assunto pacificado na Jurisprudência. Contudo foi muito bem vinda à previsão legal expressa da possibilidade da suspensão pelo colegiado responsável pela análise do recurso ou até mesmo pelo Relator.
Em Suma, essas foram às alterações promovidas pela Novatio Legis no Procedimento do Júri, é importante uma leitura detida e reflexiva do Código sem prejuízo dos demais estudos de aprofundamento, recomendo inclusive aos operadores aventureiros que buscam respostas rápidas procurando determinado Artigo de lei, sem compreender toda a sistemática do Direito Penal que adquiram um código novo, pois foram muitas mudanças. Por hora aguardamos uma interpretação razoável e garantista por parte da jurisprudência, visto que como já dito várias vezes, mas nesse caso vale a pena ser repetitivo, mudanças sensíveis foram promovidas.